quinta-feira, 20 de setembro de 2007

ESCREVER PARA QUÊ?!?


I. Tão tarde já. Toda a vida foi tarde…

Se Gostava de escrever um livro?... Gostava antes que me escrevessem como os loucos escrevem a lua, sem buracos nem areias cinzentas e distantes, só luz brilhante…
Gostava que as palavras pudessem ser inventadas antes de serem escritas, que tudo o que pudesse ser pensado pudesse também ser escrito... Que todas as coisas renascessem num só gesto… Se ao menos eu fizesse isso acontecer... Mas o tempo passa, uma vida não chega para encher um espírito vazio, nem sequer uma eternidade deve chegar, para uma alma como a minha.

Levantou-se um vento frio de angústia, uma febre crónica de cansaço envolta numa penumbra ainda mais doentia. Um ar viciado, quente, húmido povoa de névoa os nossos corações e todos os objectos da sala. Que sufoco, que realidade, que prisão, que tédio. Sabemos que não há para onde fugir, sei que não há para onde fugir, nem como fugir. Os sonhos revestem-se de um azul ameaçador do outro lado da janela. Passam, passam constantemente e não param, não esperam, porque os cobardes e os inúteis não fazem parte das cores da aventura. E a aventura não consiste na destruição mas sim no renascer a cada momento, nas vitórias secretas, no sonho que não podemos ver com as cortinas de lágrimas que insistimos em manter. Não sei o que vou fazer de tudo o que vejo e mais ninguém vê, não sei distinguir as vozes mas sei que existo em forma de angústia literária. Essa angústia que coexiste com a necessidade urgente de escrever.
- Escrever? … Porquê? Para quê?... Foi o que sempre quis sobre tudo e sobre nada embora nada possa ser escrito sem se autodestruir… mesmo assim é inevitável… Não vês que é por isso que escrevo? Não é só porque “gostava de escrever um livro” mas porque escrever é mesmo a única forma que tenho de entrar nesta aventura...
-Sobre?... Sobre este dia, esta mesa, estas pessoas, sobre toda a humanidade, sobre o universo e cada pormenor que nele existe... Sobre não é o mais importante o importante é a essência, o que não se vê nem se adivinha, o que já passou…
Mas o tempo urge. Tão tarde já. Toda a vida foi tarde. Tarde desde que nascemos, desde que proferimos a primeira palavra e ficamos ligados inexoravelmente à linguagem do mundo e à passagem vertiginosa do tempo. Tempo. Senti-lo ou escrevê-lo? Tão pouco tempo…
Temos tão pouco tempo para compreender o que sentimos. Se o que sentimos é mesmo o que sentimos. Só tarde demais, a maior parte das vezes, tomamos consciência que nunca fomos felizes como pensávamos ter sido, que nunca fomos o que pensávamos ser. Quando já é tarde para viver é que sabemos como o fazer. Fará isto sentido? Talvez seja esse mesmo o sentido… é o desconhecimento que nos deixa na expectativa e que nos faz viver. E é com este tão fantástico paradoxo que a cada momento quando penso que sei determinada coisa, olho de novo e de novo e de novo e outra vez de novo num milhão de perspectivas sem fim. Para mim é isto a vida. Os sonhos vêem depois para que as histórias possam ser escritas…
As que não nascem de sonhos aparecem vindas do nada, formam-se na mente só depois de escritas e nunca são compreendidas verdadeiramente por ninguém. As palavras brotam da humidade dos pensamentos, desenterram desejos escondidos, sobrevivem a tudo menos a si próprias... Fragmentos de vida que nunca pensei existirem materializam-se e é assim que tudo começa (e acaba mesmo antes de começar)…




II. As visões aparecem e desaparecem como pequenas realidades dentro do grande sonho… mas no universo dos sentidos situam-se do lado de fora…


A visão de ti no mundo que eu criava, nasceu no fim de tarde de um dia azul de Verão, àquela hora que a praia acabava e renascia… Aquela hora que no Inverno era noite e que no Verão era luz, mas no fim do Verão…Aquela hora era só mais uma pequena esperança de uma visão… mística não esperada ou esperada e não desejada. É preciso que não esqueça nada. A única forma que tenho para que não desapareçam para sempre é descrevê-las ao pormenor do invisível e do impossível de forma a que na mente do mundo os sonhos se possam confundir com a realidade e a realidade pareça um sonho que nunca existiu. (A visão de mim no mundo que te criavas seria bem diferente… Como saber agora?)
Eternas imagens marcadas na memória de momentos de espaços…
A água do mar era de um morno que já não existe. A praia estava deserta ou será agora que a imagino deserta? Sinto os grãos de areia grossos debaixo dos pés. Não há dúvida que és tu. Volto a face devagar e os teus passos inaudíveis… longe e perto, à distância de uma pensamento…
O flectir das tuas pernas nervosas e douradas, é essa visão que eu recordo, a dos teus passos debaixo do sol de fim de tarde desde que apareces no cimo da escada até que chegas ao meu lado e te sentas também e sorris e o mar que me parece tão nostálgico como esse teu olhar que já passou… Pudesse eu agora sentir esse mar e essa emoção de instante. Pudesse eu ser esse mar…

Essa visão assemelha-se a muitas outras que talvez até sejam poucas e não muitas…É sempre de uma fria relatividade ter de se explicar por palavras o que não tem tradução possível… Pelo simples facto de não serem meras recordações, não são lembradas com o pensamento consciente mas são sentidas por pedaços de alma e gravam-se na memória talvez ainda antes do tempo nascer… São apenas reconhecidas…Por isso o instante é tão breve…De uma inexistência térrea e dolorosa… como se uma emoção se perdesse antes de se fazer sentir na sua plenitude… Só o fim se reconhece. Só quando já nada poderemos fazer para identificar o que se está a passar é que se dá conta que …. Já passou…
A matéria de um sonho em estado bruto talvez… A semelhança com estados primitivos de alma e de corpo. A presença de uma ausência permanente. O espírito da angústia em forma de visão em forma de pequena realidade em forma de sonho em forma de inexplicável em forma de intemporal…
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Estava escuro, um piano depressivo e flores ao lusco-fusco povoavam a lenta e pequenina noite… O silêncio caiu e a visão desapareceu quase no momento instantâneo em que se fez sentir.
Tão simples quanto isto. A eternidade de um momento que em si nada tem de especial para se guardar na memória. Nem a existência.
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(Estou tão cansada de me sentir que preferia só pensar-me ou sonhar-me, fugir de mim e poder ver-te sem um corpo e alma a abraçar a tua essência sem que tu o sentisses ou soubesses, gostava de deixar-me só e ir ter contigo sem mim. Para que a imperfeição do ser não pudesse influenciar o nosso encontro de almas, ir ter contigo sem mim, só para te sentir. Um dia. Um momento.)

Não existe muito mais alegria que tristeza nem muito mais riso que choro. Toda a mágoa e solidão são constantemente escondidas e recalcadas e só vemos e sentimos a aparência sempre feliz das mentes humanas que levemente pousam os pés no mundo por um curto espaço de tempo. (Ou tempo de espaço, que também não deve ser muito diferente...)

Porque sorris para mim? Não saberás que toda a esperança acabou com o nascimento de algo tão poderosamente previsível que é a vida?
Não é voltar atrás no tempo que quero, é só (só?) sentir onde fica esse tempo (este também) que não tem condição física de existência mas que também não passa nem fica nem vai nem morre... Onde ? Como? De que são feitas estas estranhas visões senão de tempos que não morrem nem existem nem passam? Estas lágrimas hão-de passar. Este vento passará também.

Querer o nunca mais com a mesma intensidade do para sempre.


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Estava sol, rio e vozes, ar livre e mesas com gente indiferente. Quente. Calor. Levanto-me por uns momentos e afasto-me numa direcção oposta a ti. Ao voltar a aproximar-me, por entre vidros abertos, olho para ti de longe (uns meros passos) e o teu olhar esboça o início de um sorriso que morre ainda antes de nascer. Sorrio e o teu olhar cruza o meu e desvia-se de vez… Outro momento que se grava na eternidade no mistério da razão. Tão vulgar e tão inexplicável. Foi um instante deste Setembro igual a tantos outros, com a diferença que jamais o esquecerei. Como a ti.
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III. O SONHO…








(Há sempre um sonho dentro de um sonho).

A vida continua com a indiferença cinzenta a tudo o que lhe é exterior. Saber descrever as mesmas emoções fora do sonho e dentro deste sonho. É aqui que reside o mistério da alma humana.
E transformá-las em pedras.


Um estranho sol de Inverno parou o tempo. O passado sempre a permanecer em imagens descontínuas. O presente também já não será agora, porque agora ainda nem sequer te conhecia nem me conhecia neste futuro longínquo a que cheguei só. Mais só que a única estrela que aparece neste sonho de fim de noite ou de início de manhã.

Tudo azul. Sofás. Cinzeiro. Ar. Parede. Música líquida e também azul. Ecrã televisivo. Uma estrada que se estende muito para além do suportável… do lado de fora do azul sereno da janela aberta. Ampla mas labiríntica. De uma claridade ao mesmo tempo límpida e obscura. Escadas. Barulho de água não rítmico e o chão de vidro gelado onde se repousam tapetes azuis escuros e claros… cobertos pelos espíritos da essência azul da sala.
O fim de tarde que se adivinha no teu olhar também de desespero e de insanidade também de vingança e de amor. Quem se podia cansar de te ouvir nessa imensa solidão da loucura?
Quem no universo se poderia cansar de te chamar repetidamente e de te levar ao colo no pensamento para onde quer que quisesses ir? (Só escondendo as frases fora da lógica temporal é que os sentimentos finalmente se revelam...É sempre preciso estar-se muito atento...Principalmente quando se escreve sem pensar. E quando se ama verdadeiramente.)

Lá estávamos nós cansados do regresso, doentes da partida da espera do brilho que transparecia no rosto de um tempo que ainda já passou, mas que ainda não tinha passado, há muito muito tempo…

Tinhas olhos de fogo e de chuva. Era neles que a minha alma repousava e se sentia segura. Podia ter vivido desse olhar toda a vida. Por mais breve ou longa que ela tivesse sido. Mas a vida não espera pelas almas perdidas como as nossas. Sei agora, e só agora que estava perdida e só. Tu nunca estiveste, fui eu que me perdi em ti, talvez por cansaço ou desilusão, por não saber ainda que não era o olhar que me prendia mas a alma. Sei-o agora mas nem sempre o soube.
Somos de um tempo esquecido que guardámos para sempre no olhar.
Saudades de mim nessa altura tão breve e misteriosa. Quase outra dimensão. Alma desconfortável. Pensamentos a descoberto…tentativas constantes de esconder e ignorar o sofrimento. Aquele sorriso.
Será que alguma vez te voltarei a encontrar? Continuo com artifícios de linguagem ingenuamente… se eu ao menos soubesse o que é gostar, o que foi gostar assim tão incondicionalmente…Que ironia. Gostar é gostar sem condições. E amar?
Intensidade de alma. Sabíamos que mais tarde ou mais cedo nos íamos separar.
(Como de ti). – Promete que nunca me vais deixar cair. E de mim.
E não deixaste.

Como posso ter memória de ti se não tenho de mim? Onde foi que me deixei? Talvez no meio daquele mar de fim de verão, ou na prisão do tempo do teu olhar… As vozes confundem-se agora na imensidão do vazio e já não te consigo distinguir no universo…Se algum dia o consegui também não sei. Mas agora nunca mais vou saber.
Nunca mais…Revolta...Sombra que não desiste de persistir…Que não passa…
- Vem para perto de mim mas sem eu saber. Ensina-me de novo(?) a amar…
Como posso querer saber amar se não sei o que é o amor?
Saber amar será amar?
Não, não me deixei em ti. Deixei-me na solidão da nossa alma dentro de um tempo que nunca existiu. Onde me deixaste não sei. Há muitos nós que se espalham, que se dividem e se separam para depois se tornarem a juntar e voltarem a separar numa eternidade de instantes. Onde estás tu agora e com que parte de mim te foste encontrar da última vez que me olhaste? Nunca estivemos juntos na plenitude do ser nem separados na plenitude do não ser. Nunca fomos nunca e sempre fomos sempre.
Aquele nunca e aquele sempre que guardaste na alma. A forma do que não tem forma. A camisola azul clara de gola alta que um dia existiu na fria noite de tábuas de areia. A indefinição do ar numa densidade leve e pesada… mistura de sonhos e realidade…continua a não haver forma nem tempo nem cura…
Até que a paz retorne à alma perdida, a noite à madrugada…Estou certa que aquela noite nunca amanheceu…Ficará como muitas outras indefinidamente à espera da madrugada…
Será que ainda aí estás a ouvir-me? Só o que alguma vez te pedi. E te perdi. Na esperança de te esquecer esqueci-me…

Estou aqui a tentar ouvir o silêncio das tuas palavras e sentir a saudade do teu abraço. Que linguagem tem o tempo que não morre?
A linguagem do amor que já não temos que nunca tivemos de tão cansados e inertes para alguma vez pensarmos em nós.
O esquecimento prévio de um sofrimento pode ser a coisa mais perfeita para se ultrapassarem as tragédias de amor…Como espectadores da nossa própria vida, passamos ao lado de muito do que poderia ser nosso… Tudo passa como se nunca tivesse existido verdadeiramente. É desta loucura que tudo é feito. Da loucura da solidão. Se não sei o que é o amor é porque nunca amei? E se estou só? Ainda.
Vem proteger-me dessa solidão que me consome os pensamentos e me transforma em divisões frias de mim mesma. Mas eu já estou longe, já não consigo ouvir-me. A única coisa que alguma vez te pedi tornei-a impossível.
Nunca irei entender a natureza humana, e ainda bem. Talvez possa compreender as consequências da existência.
Somos iguais. Mesmo iguais. É só uma ilusão que nos faz percepcionar as diferenças. Tu sentes o que eu sinto, o que todos sentimos. Não sou especial. Tu não és especial. Tudo é ilusão e desconforto humano.
Subsiste a dúvida. Porque se interpôs entre nós o desconhecido? Queria continuar a desconhecer-te mas o afastamento do trivial tem os seus perigos. Onde estavas tu quando precisei de ti? Vulgar. Anónimo. Ridículo. A verdade é que eu não sabia onde nem como te encontrar até te desconhecer de vez.
Vou fechar os olhos e adormecer devagarinho. Durante a noite, virás de mansinho visitar aquela parte de mim que eu não conhecerei. Peço-te, quando chegares não me acordes. Olha-me só, de levezinho e depois vai embora. Eu vou saber que aqui estiveste. A tua presença permanecerá no silêncio vazio da madrugada. Agora, deixa-me adormecer antes que amanheça.