quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Para ti, J.


Para ti, J.

O acaso é só o acaso. (Só?)... E nada para além disso. Toda a vida, a sequência de um acaso ainda mais estranho do que qualquer ficção...

A morte em cada esquina, as palavras e as memórias, a noite e o frio, não havia nada que pudesse fazer para se libertar desta vida. Havia ainda a vontade de escrever tudo o que sentia. E escreveu com a urgência de um tédio tardio de alma cansada. Depois deixou-se ficar a adormecer perto da janela aberta que deixava entrar o frio azul da noite. Aquela noite era como música líquida que se esvaía entre os dedos de todas as mãos do mundo. Era como o acordar para um abismo. Os papéis caíram com o vento mas as palavras que tinha escrito ainda a atormentavam como entraves para a liberdade.

Estou só. Perfeitamente só. As horas morrem atiradas contra superfícies de paredes lisas e brancas. Nem um som. Todos os projectos passados e futuros vejo-os desaparecer lentamente com os restos de vento por debaixo da cortina da janela que se eleva ainda mais lentamente para deixar sair o longo desfile de telas sem cor, literaturas nocturnas por começar, de ciência pura incompreendida, de filosofia de rua e de escola, tudo o que nunca consegui concretizar. Todos os projectos só interessavam porque eram projectos. Tudo o que fiz nos meus tempos livres foi a única coisa de algum interesse relativo. E falo no passado por nunca ter tido presente, só meio presente e meio futuro, um tempo quase inexistente que fica atrás de toda a tristeza do olhar e se vai perdendo… Tudo inútil e tudo o que existe deve ser inútil. De uma profunda inutilidade. Só assim digno se ser apreciado e amado incondicionalmente. Mas tu apareceste e esta inútil dor se ser e de sentir passou e nada mais me resta a não ser esta solidão que preservo, que poupo até ao fim, da qual me resta já tão pouco também. Meu Querido J. Escrever-te assim tão directamente assusta e quase destrói o teu ser dentro de mim, só o nomear-te assim tão grosseiramente… Mas de que outra forma compreenderias? Tu que vives desse teu presente tão real, tão bom, tão invejavelmente científico. O próprio sorriso às vezes parece surgir do resultado de múltiplas experiências falhadas com um resultado absolutamente magnífico que é esse sorriso eterno. J. J. J. J. J. J. J. J. J.J. Repetir o teu nome até à exaustão mental fazer-me perder o sentido de ti. Repeti-lo no medo e na consciência de perder o significado de uma mera junção de letras. Perde-lo mesmo assim pelo medo de perder…

Ruínas de sentimentos é tudo o que J. consegue alcançar com o olhar e a alma naquela noite tão fria.

Envolto em pensamentos de perda e revolta J. chegou a casa, mesmo não querendo, teve mesmo de chegar a casa, fazia parte da sua natureza, e afastou matematicamente tudo o que pudesse trazer à memória a existência de I. Sentiu-se mais leve, de uma leveza inexplicável. Foi como se um peso invisível tivesse desaparecido para sempre.

Tinha a impressão de ter começado a viver depois de tanto tempo simplesmente a existir na alma de outra pessoa. Agora sentia-se só, talvez este fosse o preço a pagar pela liberdade de ser que sentia.

Sentia-me ainda revoltado nem sei contra quê , contra que parte de mim ou de ti... quase letárgico, com vontade de dormir, e de ouvir música distante que me embalasse num sono breve e longo, que me desse resposta às minhas perguntas cada vez mais infundadas. Mas agora, a minha letargia matinal parecia ter-se transformado em energia e vontade de viver. Não queria ter de pensar muito, nem conseguia pensar muito, só me apetecia viver, rir sempre e fazer loucuras, ou melhor ser a própria loucura, toda esta energia temo que parte dela possa ser falsa, e seja só a materialização da minha raiva acumulada. Tantos pensamentos desorganizados, tanto de mar como de sol, tanto de céu como de inferno, tanto de vida como de ausência de vida... Ás vezes gostava de deixar de pensar, nem que fosse por poucos instantes, só para poder saber o que é não pensar, senão como poderei algum dia saber o que é pensar? Pois se nunca deixei de o fazer... Como poderemos algum dia saber qual a sensação de não pensar?? Gostava mesmo de passear na minha mente, descobrir escuridões, túneis inacessíveis, desejos recalcados e esquecidos, cores novas, gritos e água gelada, vozes a proclamarem liberdade em palavras desconhecidas, muito e muito mais. O que iria encontrar não posso adivinhar, é o meu único segredo, que de tão guardado me esqueci dele. Posso tentar imaginar, posso continuar a descrever a minha imaginação, mas quando chegar ao fim, a desilusão pode deitar tudo por terra, pode fazer-me chegar intacto da minha viajem, mas pode também trazer-me mais feliz ou menos feliz, mas não me trazer a mim. É pena mas quanto mais me quero conhecer a fundo, mais me afasto de mim. Acabo a pensar em ti.

Fujo da realidade sempre que posso, sempre o fiz mas penso que só agora tomei essa consciência de fraqueza mental. Sei que não me deixaste só J. Sei dentro de mim que nunca estiveste comigo. Sei que mesmo assim me fizeste a pessoa mais feliz do mundo sem teres a mínima nocção disso. Sei desse encanto que te persegue para onde quer que vás, que atrai todos, esse desprendimento e desconhecimento das emoções que provocas à tua volta, esse magnetismo da indiferença.

16 comentários:

ruth ministro disse...

...

Sem palavras.

Beijo

Fernando disse...

RAIN

Antes mesmo de ver o comentário da Nuvem...Disse exactamente o mesmo.

Nem me atrevo. Impressionante.

***

Melga do Porto disse...

Os chineses dizem que um relógio nunca deve estar “parado”.
Não importando mesmo se nos dá o “tempo” certo ou não.
È um pouco como os nossos sentimentos.
Umas vezes estão no tempo certo, outras não.
Mas o importante é que nunca estarão “parados”.
:)

OLHAR VAGABUNDO disse...

logo de manhã ler este texto...não fiquei sem palavras pois disse uauuuu...
beijo vagabundo

Vitor disse...

sem palavras e sem fôlego...

gostei de ler...

Maria disse...

Os teus textos perturbam-me....
Hoje decidi dizê-lo!

... disse...

A corrente deste texto deixou-me cada vez mais perto do segredo das palavras.

Adorei!

Oliver Pickwick disse...

Ei, Rain! Esse foi escrito com tinta a base de sangue de dragão. É um thriller intimista, nitroglicerina pura. Até parecia alguma coisa escrita pela moça da foto abaixo da sua, a Virginia.
Parabéns por este texto brilhante.
Beijos!

YTMO disse...

Texto lindíssimo.
Adorei...

O Profeta disse...

Saberás que a brisa afaga as folhas
Com toque invisível e terno
A terra reclama as tuas mãos
Na viagem da tarde, no sereno


Boa semana



Doce beijo

Anónimo disse...

Gostei muito dos teus textos.
Não gosto de youtube.

Um beijo
Luís

Anónimo disse...

Gostei muito dos teus textos.
Não gosto de youtube.

Um beijo
Luís

as velas ardem ate ao fim disse...

"E falo no passado por nunca ter tido presente, só meio presente e meio futuro, um tempo quase inexistente que fica atrás de toda a tristeza do olhar e se vai perdendo… "

Lindo!Sem evitar as lagrimas.

Bjinho

Fabricio Fortes disse...

uau! uma densidade e uma tristeza que tocam e que prendem e que cativam.. o mais estranho é que eu tinha a certeza de já haver comentado esse texto, mas me enganei.. de qualquer forma.. muito, muito bom..
bom fim-de-semana para ti
bjo

Luís Leite disse...

Um texto muito bom. Gostei muito do ritmo das frases e das palavras. O ambiente está bem conseguido. E o melhor elogio que poderias ter foi o que disse a maria.

ContorNUS disse...

rain...


down on me
feel so good